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A SOPA DA DONA LEBRE

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Na casa da Dona Lebre e do Sr. Coelho não faltavam ingredientes frescos e saborosos. O casal dedicava toda a semana ao cultivo da sua horta, algo que, apesar de por vezes se revelar uma tarefa árdua, ia-se tornando mais fácil de suportar graças ao trabalho em conjunto que os dois muito bem faziam.

Todos os sábados de manhã, carregavam caixas recheadas de frutas e legumes até ao centro da vila, onde se realizava um pequeno mercado de fim-de-semana. Dos pontos de venda que lá havia, as mercearias da Dona Lebre e do Sr. Coelho eram o preferido dos animais que ali viviam. O Sr. Leitão, um porco que passava os dias a comer e a dormir, elogiava frequentemente as maçãs vermelhas e suculentas que o faziam salivar só de olhar. Já a Dona Crista, a galinha mais bisbilhoteira da vila, era fã das maçarocas de milho, afirmando serem das melhores que alguma vez provara. E havia ainda as abóboras que faziam as delícias do Sr. Cascos, um cavalo muito vaidoso.

A Dona Lebre ficava sempre grata pela apreciação que os animais tinham pelas suas colheitas. Por sua vez, o generoso Sr. Coelho oferecia muitas vezes um ou dois ingredientes extra aos clientes habituais, sem lhes cobrar mais por isso.

Aos domingos, à hora de almoço, a Dona Lebre aproveitava os legumes que sobravam para fazer uma grande panela de sopa, que servia de boa-vontade a todos os conterrâneos. O cheiro era tão apetitoso que, assim que começava a pairar no ar, os animais faziam fila junto à sua casa, à espera da sua vez de serem servidos.

Depois, a Dona Lebre e o Sr. Coelho descansavam bem para recuperarem energias para mais uma semana de trabalho. A sua dedicação à horta era tal que nada os fazia parar, fizesse chuva ou sol.

Quando começaram as tempestades de outono, o Sr. Coelho ficou muito constipado, sentindo-se tão doente que chegou ao ponto de não conseguir trabalhar mais e ter de ficar de cama. Em consequência disso, a Dona Lebre passou a ter não só de tomar conta da horta sozinha, mas também cuidar do Sr. Coelho, para o ajudar a recuperar.

Na segunda-feira de manhã, preparou-lhe um sumo de laranja e cenoura feito com ingredientes da horta. Depois, pôs-se a regar e a plantar alguns legumes, os quais estariam prontos para colher dali a uns tempos. E só se apercebeu das horas quando viu o sol desaparecer no horizonte e começou a escurecer. A Dona Lebre tinha trabalhado a tarde toda, deixando ainda muito por fazer, mas estava na hora de tratar do jantar. Quando acabou de comer e de alimentar o Sr. Coelho, foi logo dormir para repor energias para o dia seguinte.

Assim que amanheceu, o Sr. Coelho acordou com muita tosse, então a Dona Lebre preparou-lhe logo um chá quente. De seguida, foi colher alguns frutos que já estavam maduros.

«Se alguém me desse uma mãozinha enquanto o Sr. Coelho está doente, seria muito mais fácil para mim gerir todas as tarefas que tenho para fazer», pensou ela, na expectativa que algum dos animais da vila se oferecesse para ajudá-la.

Depois de almoço, antes de voltar para a horta, pôs-se a comer uma maçã à janela. Entretanto, passou por ali o Sr. Leitão.

«Ora viva, Dona Lebre», cumprimentou ele.

«Boa tarde, Sr. Leitão».

«Mas que maçã tão apetitosa que aí tem!».

«Tenho andado a colher fruta da horta sozinha, porque o Sr. Coelho está doente e não se encontra em condições para me poder ajudar».

«Ora bem… isso é que é uma pena».

«Não tem sido nada fácil gerir o tempo enquanto preciso de tratar dele e da nossa horta, ao mesmo tempo», admitiu a Dona Lebre.

«Valorizo o seu esforço», disse o Sr. Leitão. «Eu adoro tanto essas maçãs que aproveito para perguntar se, por acaso, me poderia dispensar duas ou três».

«Com certeza, Sr. Leitão», afirmou ela. «Posso dar-lhe uma caixa cheia de maçãs acabadas de colher».

«Oh, que ótimo! Fico-lhe muito grato pela sua amabilidade».

«Em troca, poderia pedir a sua ajuda para sacudir a macieira?», sugeriu a Dona Lebre. «Algumas maçãs estão demasiado altas e eu não consigo chegar-lhes. Mas o Sr. Leitão parece bastante forte para fazer com que elas caiam».

«Ah, ora bem…», gaguejou o porco. «Pois, eu até tenho alguma força... mas sabe, lembrei-me agora mesmo que tenho imensos assuntos para tratar e já estou atrasadíssimo! Lamento não conseguir ajudar; vou ter de ir andando. As melhoras para o Sr. Coelho!».

E, sem mais demoras, o Sr. Leitão afastou-se apressadamente. Enquanto terminava a sua maçã e se preparava para voltar a pôr mãos à obra, a Dona Lebre reparou que, lá ao longe, o porco acabara de se encostar à sombra de uma árvore para dormir uma bela sesta.

Na quarta-feira, acordou cedo e lembrou-se de fazer umas papas de milho para o pequeno-almoço. Estas não só lhe dariam força e energia para um novo dia de trabalho, como também fariam bem ao Sr. Coelho, que ainda continuava debilitado. Para isso, foi ceifar algumas maçarocas de milho e depois sentou-se num banco à porta de casa a tirar-lhes as barbas.

Enquanto ali estava, passou a Dona Crista a peneirar-se como sempre fazia ao caminhar pelas ruas da vila.

«Bom dia, Dona Lebre», cacarejou ela.

«Bom dia, Dona Crista».

«Já anda a tratar dos seus cozinhados deliciosos, logo pela manhã?».

«Vou preparar umas papas de milho para mim e para o Sr. Coelho, que está muito doente e não me consegue ajudar a cuidar da horta».

«Ah, sim… Já tinha ouvido dizer que ele não se encontra muito bem», admitiu a Dona Crista, que sabia sempre tudo o que se passava na vila através das suas amigas. «Oxalá ele melhore depressa».

«Vai melhorar, de certeza. Estou a fazer por isso, mas dava-me jeito uma ajudinha para tratar da horta ao mesmo tempo».

«Como eu a percebo, Dona Lebre», disse a galinha. «Mas, já agora, será que poderia dispensar-me uma dessas maçarocas? Fiquei cheia de vontade de petiscar!».

«Terei todo o gosto em dar-lhe um cesto cheio delas. Mas aproveito para perguntar se, antes disso, teria disponibilidade para me ajudar a fazer uns buracos na terra com o seu bico para eu plantar cenouras».

«Oh, mas que cabeça a minha!», exclamou a Dona Crista. «Ando aqui tão distraída que nem reparei que está na hora de ir para casa tratar do almoço para os meus filhos. Gostaria muito de a ajudar, mas neste momento não é mesmo possível. Até uma próxima!».

Dito isto, a galinha desatou a correr esbaforida em direção ao centro da vila. Quando terminou de tirar as barbas a todas as maçarocas, a Dona Lebre avistou no horizonte um bando de galinhas a cacarejar de forma desordeira, como era comum fazerem sempre que havia mexericos para partilharem umas com as outras. E não se surpreendeu nada ao reparar que, entre elas, estava também a Dona Crista.

Mais um dia se passou, e o Sr. Coelho começava finalmente a apresentar algumas melhoras. Apesar de ele ter manifestado vontade de voltar ao trabalho, a Dona Lebre insistiu que continuasse em repouso, uma vez que ainda tinha alguma tosse. E, para o reconfortar, decidiu preparar um doce. Por isso, foi à horta buscar uma das abóboras mais maduras que tinha, transportando-a, com algum esforço, até à entrada de casa. Depois pegou numa ferramenta de corte e sentou-se num branco a parti-la em pedaços. Foi então que por ali passou o Sr. Cascos.

«Como está, Dona Lebre?», cumprimentou ele, balançando as suas crinas ao vento de forma pomposa.

«Bom dia, Sr. Cascos», respondeu ela. «Estou um pouco cansada, para ser sincera. E tenho imenso trabalho por fazer».

«Oh, que grande chatice», comentou o cavalo. «Mas, pelo que vejo, continua a cuidar bem da sua horta, julgando por essa abóbora tão robusta».

«Fiquei cheia de dores nas costas por tê-la carregado para aqui sozinha, já que não tenho quem me possa ajudar», admitiu a Dona Lebre.

«Bem, com certeza que o Sr. Coelho ficará bom num instante e poderá voltar a ajudá-la. Eu até lhe perguntava se, porventura, tinha mais alguma abóbora como essa para eu levar comigo, mas não quero estar a incomodá-la».

«Tenho mais umas quantas prontas a colher», respondeu prontamente a Dona Lebre. «Deixo-o ir à horta à vontade para escolher as abóboras que quiser, mas estou a precisar de fazer distribuição de água por todos os legumes. Se quiser ser prestável, diria que os seus cascos poderão servir para fazer ótimas regadeiras».

«Eu gostaria muito de lhe ser útil, Dona Lebre. Mas, sabe… não tenho andado lá muito bem das pernas. Ultimamente tenho tido imensas cãibras e mal posso caminhar, quanto mais utilizá-las para cavar! Talvez numa próxima consiga ajudar. Até breve!».

Nisto, o Sr. Cascos adaptou a sua postura, fazendo as pernas tremer de forma dramática, e começou a afastar-se, dando a impressão de coxear. Quando, por fim, desapareceu atrás de umas árvores, a Dona Lebre jurou ter ouvido o som de um galopar vigoroso, com tal intensidade que nenhum cavalo com dores nas pernas conseguiria atingir. Depois de ter limpado de sementes a abóbora que acabara de partir, foi pôr uma panela ao lume para preparar o doce. E assim que terminou, passou o resto do dia de enxada não mão a fazer regadeiras na horta.

Na sexta-feira, ainda que se sentisse exausta, a Dona Lebre não deixou de se preocupar com os preparativos para o mercado de fim-de-semana, enchendo várias caixas com frutas e legumes que teve de carregar para o centro da vila na manhã seguinte. Terminadas as vendas de sábado, foi surpreendida pelo Sr. Coelho, que apareceu no mercado com um aspeto muito saudável, dizendo que já se sentia bem graças a todo o tratamento que recebera por parte dela. Depois, ajudou-a a arrumar as mercearias que sobraram e a carregar as caixas de volta para casa.

No domingo, a Dona Lebre decidiu que, daquela vez, iria fazer a sua famosa sopa apenas para si e para o Sr. Coelho. Dado que nenhum animal da vila se oferecera para ajudá-la a cuidar da horta enquanto o marido esteve doente, achou que também não eram merecedores da sua boa-vontade.

Mal tinham acabado de se sentar à mesa para começar a comer, ouviram bater à porta. O Sr. Coelho levantou-se e foi abrir.

«Sr. Coelho, que bom voltar a vê-lo!», exclamou o Sr. Leitão.

«Está com ótimo aspeto!», elogiou a Dona Crista.

«Nota-se que foi muito bem tratado», afirmou o Sr. Cascos.

«Muito obrigado, meus caros!», agradeceu o Sr. Coelho. «O que os tráz por aqui hoje?».

«Estávamos a passar pelas redondezas e não conseguimos ignorar este cheiro apetitoso que se sente à distância», admitiu a Dona Crista.

«E, por acaso, já comia qualquer coisa», disse o Sr. Cascos, enquanto os outros dois animais concordavam com ele, abanando a cabeça.

«Então estão com sorte, que há espaço para mais três à mesa e a sopa da Dona Lebre ainda está quente», ressalvou o Sr. Coelho. «Entrem e venham almoçar connosco».

Sem hesitar, os três aceitaram o convite e entraram.

«Trago aqui três convidados que não resistiram ao cheiro da tua sopa», disse o Sr. Coelho ao entrar na cozinha.

«Ora, sejam bem-vindos!», cumprimentou a Dona Lebre. «Sentem-se, por favor, que eu vou já servir-vos».

Então, levantou-se e serviu três tigelas que colocou à frente de cada um dos animais.

«Bom apetite!».

A vontade de provarem aquela sopa era tanta que, assim que receberam as suas tigelas, começaram logo a comer.

De súbito, a Dona Crista pôs-se a cacarejar e a dar às asas de forma bastante atrapalhada.

«Ai, ai, ai! O que é isto?!», exclamou ela, cuspindo tudo o que acabara de meter no bico.

Quando olhou para a sua tigela, reparou que não tinha nem uma gota de sopa lá dentro. Em vez disso, estava cheia de barbas de milho secas.

Ao mesmo tempo, o Sr. Leitão começou a roncar muito desagradado, assim que se apercebeu que a sua tigela estava cheia de restos de maçã todos roídos e oxidados.

Já o Sr. Cascos, desatou a relinchar, arrepiado, quando percebeu que tinha a boca cheia de sementes de abóbora, que era a única coisa que a sua tigela continha.

O Sr. Coelho ficou espantado ao ver a reação dos animais e depois olhou para a Dona Lebre.

«Alguém tem alguma coisa para dizer?», perguntou ela tranquilamente.

O Sr. Leitão, a Dona Crista e o Sr. Cascos evitaram responder-lhe ou cruzar olhares com o dela, cada um fitando a respetiva tigela cheia de restos, com um ar embaraçado. Já a Dona Lebre e o Sr. Coelho, continuaram a deliciar-se com uma boa dose de sopa quente e saborosa, fruto do seu trabalho conjunto.

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